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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Câncer

Imagine a pior dor
Não apenas a que afeta o corpo, mas a que enfraquece a alma.

"Ao levantar, muito cuidado, amigo.
Não ponha os pés no chão. Corre perigo se há nylon no tapete: ele dá câncer.
Pois somente no ar, mas com cautela.
Uma pesquisa sábia nos revela esta triste verdade: o ar dá câncer. 
À hora do café, não seja pato, pois tanto açúcar como ciclamato e xícara e colher, sorry, dão câncer.
O banho de chuveiro? Não tomá-lo.
O de imersão, também. Sinto informá-lo do despacho londrino: água dá câncer.
Não se vista, meu caro ou minha cara.
Um cientista famoso eis que declara: na roupa, qualquer roupa, dorme o câncer.
A nudez, por igual, não recomendo,
A fim de prevenir um mal tremendo: sábado se apurou que o nu dá câncer.
Rumo ao batente, agora. Antes porém,
Permita que eu indague: o amigo tem um carrinho? Que azar. Carro dá câncer.
E coletivo, nem se fala.
Em massa, aumenta a perspectiva de desgraça. No ônibus, no avião, viaja o câncer.
Invente um novo meio de transporte para ir ao trabalho, e não à morte...
Mas sabe que o trabalho já dá câncer?
Isso mesmo: afirmou-me com certeza uma nega com o nome de Teresa
Que dar duro é uma fábrica de câncer.
Pare de trabalhar enquanto é tempo!
Mas evite o lazer, o passatempo, que no jardim da folga nasce o câncer.
Dormir? Talvez. Ou antes, nem pensar.
Em sonho, pelo que ouço murmurar, é quando mais solerte chega o câncer.
O amor então, é a grande solução?
Amor, fonte da vida... Essa é que não.
Amor, meu Deus, amor é o próprio câncer.
Viva, contudo, sem ficar nervoso,
Mas sabendo que é muito perigoso (lá disse o Rosa) e que viver dá câncer.
Já que você nasceu... Ah, não sabia deste resumo da sabedoria?
Nascer, mero sinônimo de câncer.
Resta morrer, por precaução? Nem isto.
Veja, no céu, o aviso trimegisto: no mundo de hoje, até morrer dá câncer.
Viva, portanto, amigo. Viva, viva de qualquer jeito,
Na esperança viva de que o câncer há-de morrer de câncer.
Ou morrerá - melhor - pela coragem
De enfrentarmos o horror desta linguagem que faz do câncer dor maior que o câncer.
Pois se souber do trágico brinquedo que é ver câncer em tudo desta vida,
o câncer vai morrer - morrer de medo."
(por Carlos Drummond de Andrade)

Viver e acreditar na vida, na bondade que ainda existe no mundo.
Na fé, seja lá em que, mas acredite.
E acredite no melhor de si mesmo.

Viva.


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